O Programa Bolsa Família fez 10 anos no domingo,
dia 20. Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva,
atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74 mensais, em média. Hoje se
estende a 13,8 milhões de famílias e o valor médio do benefício é de R$ 152. No
conjunto, beneficia cerca de 50 milhões de brasileiros e é considerado barato
por especialistas: custa menos de 0,5% do PIB. Por Roldão Arruda (*)Para avaliar os impactos desse programa a socióloga
Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro Pinzani realizaram um
exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a 2011. Ouviram mais de
150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em lugares remotos e
frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no interior de Minas. O
resultado da pesquisa está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado
há pouco. Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações
contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas.
Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres. Os
pesquisadores também rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O
ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz
Walquiria, que é professora de Teoria da Cidadania na Unicamp. Nesta entrevista
à repórter Isadora Peron ela fala desta e de outras conclusões do trabalho. P: Como surgiu a ideia da
pesquisa? Walquiria Leão
Rego: Quando vimos a dimensão que o programa estava tomando,
atendendo milhões de famílias, percebemos que teria impacto na sociedade. Nosso
objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez que o programa determina que a
titularidade do benefício cabe às mulheres, era preciso conhecê-las. Então
resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que continuam muito pobres, em regiões
tradicionalmente desassistidas pelo Estado, como o Vale do Jequitinhonha, o
interior do Maranhão, do Piauí… P: E
quais foram os impactos que perceberam? WLR: Toda a sociologia do dinheiro mostra que sempre houve
muita resistência, inclusive das associações de caridade, em dar dinheiro aos
pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles não sabem gastar, vão comprar
bobagem.” Então é melhor que nós, os esclarecidos, façamos uma cesta básica,
onde vamos colocar a quantidade certa de proteínas, de carboidratos… Essa
resistência em dar dinheiro ao pobres acontecia porque as autoridades intuíam
que o dinheiro proporcionaria uma experiência de maior liberdade pessoal. Nós
pudemos constatar na prática, a partir das falas das mulheres. Uma ou duas
delas até usaram a palavra liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais
liberdade”, disseram. E isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou uns
vales como gostavam de fazer as instituições de caridade do século 19, você
está determinando o que as pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas
experimentarem coisas. Nenhuma autonomia. P: Está dizendo que essas pessoas ganharam liberdade? WLR: Estamos tratando de pessoas
muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado. Quando
falamos em mais autonomia, liberdades, independência, estão nos referindo à
situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa dizer de uma
pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre ganhou mais
liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao receber o
benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência financeira.
Independências financeiras nos têm – e olhe lá. P: O que essa liberdade significou na prática, no cotidiano
das pessoas? WLR: Proporcionou
a possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher
é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas
fazem? Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão.
No Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia
macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão.
Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o
iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo,
gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de
uma vez. P: A que
atribui a resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do
benefício? WLR: O Bolsa
Família é um programa barato, mas como incomoda a classe média (ela ri). Esse
incômodo vem do preconceito. P: Fala-se
que acomoda os pobres. WLR: Como
acomoda? O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer
pessoa. Quem diz isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os
maridos dessas mulheres normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um
deles quando tinha sido a última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz
uns dois meses, eu colhi feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão.
Disse que dependia que às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e
vimos que ganhava menos num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem
que se sujeitar a isso, praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos têm
que ser desfeitos no Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária,
mais democrática. É preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo. P: No livro a senhora diz que
essas mulheres veem o benefício como um favor do governo. WLR: Sim, de 70% a 80% ainda
veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que
é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos
direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia
de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de
políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo… Os
desafios a partir de agora são muito grandes. P: Qual é a sua avaliação geral do programa? WLR: Acho que o Bolsa Família
foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos.
Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa
talvez seja a maior conquista. P: Entre
as mulheres que ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora? WLR: Uma das mais marcantes
foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a
minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que
morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história
dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita
coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha
vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito
comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrido”. (*) Com Isadora Perón
Fonte: blogs.estadao.com.br/roldao-arruda
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