Somos Nativos - Estamos em guerra
Nesta semana, o
Ministério de Justiça (MJ) fez circular entre os membros da Comissão Nacional de Política Indigenista
(CNPI) uma minuta de portaria ministerial que acrescenta vários
procedimentos administrativos ao processo de demarcação das terras indígenas,
já regulado pelo decreto 1.775/96, ainda em vigor. A portaria, que deve ser
publicada nos próximos dias, multiplica os ritos burocráticos e formaliza a
intervenção de quaisquer interesses eventualmente contrariados desde a etapa
inicial do processo, a de identificação das áreas de ocupação tradicional. O
comentário é de Márcio Santilli
e publicada pelo Instituto
Socioambiental - ISA, 30-11-2103. Essa fase inicial implica a
constituição de grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo com formação
acadêmica reconhecida e integrado por outros técnicos – cartógrafo, biólogo,
indigenista, agrônomo, conforme o caso – que identifica as referências de
ocupação tradicional indígena, características ambientais e situação fundiária,
além de formular uma proposta de limites a ser submetida às instâncias de
decisão política – o MJ e a Presidência da República – para posterior
demarcação física, homologação e registro cartorial. Esse grupo, de caráter
eminentemente técnico, pode e deve produzir informações sobre interesses não
indígenas incidentes na área em estudo, mas não lhe compete – e nem ele dispõe
de legitimidade, poder administrativo ou proteção física – para rechaçar ou
pactuar com terceiros interessados. Segundo a minuta, o grupo “técnico”
seguiria sendo coordenado por antropólogo, mas constituído agora por outros quatro
membros, sendo um deles procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e os demais com formação em
cartografia, topografia e meio ambiente. A proposta diz, ainda, que os
integrantes do grupo devem ser prioritariamente funcionários públicos, podendo
ser contratados em caráter privado sob condições. A especificação da formação
técnica de cada um dos técnicos e, especialmente, a obrigatoriedade de inserção
da AGU dificultarão ainda mais a criação e funcionamento de novos grupos de
trabalho, que passarão a depender da duvidosa disponibilidade desses membros.
Ainda segundo a minuta, poderão participar das atividades do grupo
representantes da comunidade indígena local, mas também dos municípios, dos
estados e de nove ministérios, que deverão ser notificados pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) para indicar seus representantes em prazo determinado
e cuja participação deve ser formalizada por portaria. Em suma, poderão
participar do grupo até 20 integrantes, a maioria com interesses contraditórios
em relação ao objeto do trabalho. O que hoje ocorre é que a Funai encontra
dificuldade crescente para recrutar até mesmo antropólogos para coordenar novos
grupos de trabalho, pois é exíguo o número de profissionais do seu quadro e não
tem sido possível contratar antropólogos vinculados às universidades ou a
outros órgãos públicos, por caracterizar dupla remuneração. Não raro se vê
antropólogos coordenando grupos de trabalho em caráter voluntário, sem
remuneração (com direito apenas ao pagamento de despesas), e que, por isso
mesmo, prestam serviço em períodos de férias ou quando têm disponibilidade, não
podendo ser submetidos a prazos específicos para a entrega de relatórios e de
outros produtos. Nessas condições, tem sido cada vez mais difícil recrutar
coordenadores e outros integrantes para os grupos de trabalho, assim como
alocar, em cada caso, os antropólogos mais qualificados ou que tenham
experiência, relações e informações acumuladas sobre o povo indígena e a região
em questão. A nova portaria não se reporta a nenhuma dessas dificuldades
objetivas, mas as multiplica, acrescentando responsabilidades de mediação de
interesses contrariados que são estranhas à formação técnica dos profissionais
requeridos e implicam em aumento exponencial de riscos pessoais, profissionais
e políticos. Além disso, vários dos procedimentos adicionais propostos na
minuta implicariam em custos e despesas adicionais, mas o texto não provê
solução para isso. Pelo contrário, explicita que a constituição de novos grupos
de trabalho ficará subordinada “às disponibilidades orçamentárias”, que são
exíguas e incertas, mas que certamente deveriam ser reforçadas caso pretenda-se
melhorar a qualidade dos trabalhos de identificação de Terras Indígenas. Como o
ritmo das identificações já tem sido lento, prolongando conflitos, é lícito
supor que as dificuldades técnicas, burocráticas, políticas e orçamentárias que
seriam acrescidas pela portaria poderão paralisar de vez esse processo. Responsabilidade política: O ponto é
que a responsabilidade de mediação política é do governo e, no caso,
principalmente do ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, e a sua transferência para um grupo técnico, ou para a
figura de um antropólogo, é uma completa aberração. Cardozo já tem suas gavetas abarrotadas de processos de
demarcação, que aguardam decisão, por vezes, há anos. Tem sido incompetente
para equacionar o pagamento de indenizações e para conduzir as negociações
junto a proprietários rurais e ao governo do Mato Grosso do Sul, principal foco atual de conflitos envolvendo a
demarcação de Terras Indígenas e chegou a ordenar a invasão de aldeias de
índios Munduruku, no Pará, pela Força Nacional de Segurança, que matou
um índio e feriu outros. A edição da portaria aventada, ao final da sua gestão,
seria uma consagração negativa definitiva. Se quisesse, o ministro poderia
mirar-se no exemplo do seu colega, Pepe
Vargas, ministro do Desenvolvimento Agrário, que editou uma portaria no
início do ano, exigindo providências adicionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a
instrução dos processos de desapropriação para a reforma agrária, mas teve que
revogá-la no mês passado para não terminar o ano com nenhuma desapropriação,
recorde histórico insuperável. Cardozo,
que já vem nessa rota há três anos, ameaça concluir a era de omissões que
protagonizou, deixando, como herança, um tiro no pé do próprio sucessor.
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