Logo a repressão percebeu que
nem toda a Igreja apoiava o golpe. Havia até mesmo bispos e cardeais críticos à
ditadura e dispostos a defender os direitos humanos. Muitos se engajaram em
ações de resistência, seja proferindo sermões tidos como “subversivos”, seja
escondendo perseguidos políticos.
Frei Betto20/03/2014:
Sabemos que o povo
latino-americano é profundamente religioso. Pergunte a um pequeno agricultor
qual a sua visão de mundo e, com certeza, receberá uma resposta de
caráter religioso.
Sabemos
todos? Quase todos. Exceto certa parcela da esquerda latino-americana que,
influenciada pelo positivismo marxista europeu, se esqueceu de aplicar o método
dialético ao fator religioso e, na contramão de Marx e Engels (vide O Cristianismo Primitivo,
de Engels) considerou tudo o que cheira a água benta e incenso pura alienação a
ser duramente combatida.
E o pior: incluíram nos
estatutos de seus partidos a exigência de o novo militante declarar-se
formalmente ateu... Ou seja, primeiro, ateu; depois, revolucionário.
Já à
direita, mais inteligente em sua esperteza, sempre soube explorar o fator
religioso em seu proveito. Assim, para evitar que Jango implementasse no Brasil
reformas de base (estruturais) evocou a proteção anticomunista de Nossa Senhora
Aparecida e importou dos EUA o padre Peyton que promoveu aqui, nas principais
capitais, Marchas da Família com Deus pela Liberdade.
Veio
o golpe militar, a 1º de abril de 1964, e não era mentira... Jango foi deposto
e a sanha repressiva se disseminou pelo Brasil.
Como membro
da direção nacional da Ação Católica, participei no Rio, no Convento do
Cenáculo, na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da reunião da CNBB na qual
os bispos católicos definiram sua posição frente à quartelada. Houve acalorada
discussão entre progressistas e conservadores.
De um
lado, Dom Helder Camara, bispo auxiliar do Rio, apoiado
por Dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da
CNBB, criticaram os militares por desrespeito à Constituição
e à ordem democrática.
De outro, Dom Vicente
Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo
de Diamantina (MG), exigiam Te
Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os
clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu
esta segunda posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares
golpistas.
Porém,
não há mal que sempre dure. Àquela altura, um amplo setor da Igreja Católica já
estava comprometido com a resistência à ditadura. Esta não soube perceber a
diferença entre católicos progressistas e conservadores. Cometeu o equivoco de
considerar a Igreja uma instituição monolítica, de poder centralizado, unívoco,
que tacitamente acendia uma vela a Deus e outra ao diabo...
O
germe do progressismo católico no Brasil havia sido semeado pela Ação Católica,
influenciada pela Ação Católica francesa que, na Segunda Guerra,
participou da resistência ao nazismo em aliança com os comunistas.
Aqui, a JEC (Juventude
Estudantil Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica) se destacavam
na luta por justiça no movimento estudantil. Desses movimentos nasceu a Ação
Popular, na qual os militantes católicos de esquerda atuavam sem prestar contas
aos bispos nem comprometer a instituição eclesiástica.
Na
primeira semana de junho de 1964, dois meses após o golpe, o CENIMAR, serviço
secreto da Marinha, promoveu no Rio o arrastão destinado a prender militantes
da Ação Popular. Para ele não havia diferença entre Ação Católica e Ação
Popular. O apartamento da direção nacional da Ação Católica, da JUC e da JEC,
vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na madruga de 5 para 6 de junho
de 1964. Fomos todos presos.
Em
outras regiões do país, leigos, religiosos (as) e padres foram perseguidos,
presos e/ou convocados a depor em IPMs (Inquérito Policial Militar).
Logo
a repressão percebeu que nem toda a Igreja apoiava o golpe. Havia até mesmo
bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a defender os direitos
humanos. Muitos se engajaram em ações de resistência, seja proferindo sermões
tidos como “subversivos”, seja escondendo perseguidos políticos.
A
partir da prisão dos frades dominicanos aliados à Ação Libertadora Nacional
comandada por Carlos Marighella, em novembro de 1969 (vide meu livro e filme de
mesmo título, dirigido por Helvécio Ratton, Batismo de Sangue), aprofundou-se o
conflito entre Estado e Igreja Católica. A CNBB, já então hegemonizada por
bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos direitos humanos e da
democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos encarcerados.
Em
São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns criou, a partir de 1970,
uma vasta articulação de resistência e crítica à ditadura, e defesa dos
direitos humanos: Comissão Justiça e Paz, equipe Clamor, jornal O São Paulo, culminando
na publicação do mais consistente documento antiditadura produzido até hoje, o
livro Brasil Nunca
Mais, no qual os crimes da ditadura são divulgados com base, não em
notícias de jornais, e sim em documentos oficiais elaborados pelas Forças
Armadas.
Frei Betto é escritor, autor
de Diário de Fernando
– nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre
outros livros.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/
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