Por Conceição Lemes, Em
23 de maio de 2014, a presidenta Dilma Rousseff assinou o decreto nº
8.243/2014, que institui a Política Nacional de Participação Social. Uma
iniciativa histórica, que regulamenta o que já previa a Constituição Federal
desde 1988.
Na prática, o decreto 8.243/2014 cria mecanismos concretos de
participação social na administração pública por conselhos consultivos
populares. Contribui, assim, para a ampliação da cidadania de todos os atores
sociais.
“O resultado foi uma histeria geral da direita nos seus meios
de comunicação e no parlamento”, observa João Pedro Stedile, líder MST. “O
próprio PMDB e os demais partidos conservadores, mesmo sendo base do governo,
ameaçam derrubar o decreto federal e boicotar outras votações. Uma vergonha.” Os
partidos contrários alegam que o conteúdo representaria “uma invasão à esfera
de competência do Parlamento brasileiro e uma afronta à ordem constitucional do
país”.
Intelectuais e movimentos sociais brasileiros reagiram. Elaboraram
um manifesto (na íntegra, abaixo) de apoio ao decreto de Dilma e de repúdio a
posições atrasadas de alguns partidos políticos e de outros setores
conservadores da sociedade, incluindo Judiciário e mídia:
o decreto não
viola nem usurpa as atribuições do Poder Legislativo mas tão somente organiza
as instâncias de participação social já existentes no Governo Federal e
estabelece diretrizes para o seu funcionamento……o decreto representa um avanço
para a democracia brasileira por estimular os órgãos e entidades da
administração pública federal direta e indireta…
…o decreto não possui inspiração antidemocrática, pois não
submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o cidadão a
qualquer forma de controle por parte do Estado Brasileiro…
A participação popular é uma conquista de toda a sociedade
brasileira, consagrada na Constituição Federal. Quanto mais participação, mais
qualificadas e próximas dos anseios da população serão as políticas públicas.
Não há democracia sem povo. O manifesto será entregue em 1º de julho aos
presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-Alagoas) e da Câmara,
deputado federal Henrique Alves (PMDB-RN).
Entre os muitos signatários, os juristas e professores
Fábio Konder Comparato, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo Dallari e José
Geraldo de Sousa Júnior, além do próprio Stedile. O professor José Geraldo é um dos grandes juristas da atualidade. Em 2008, foi eleito reitor da Universidade de Brasília (UnB) por voto direto paritário de professores, estudantes e funcionários da instituição.
Atualmente, integra a Comissão de Educação Jurídica do
Conselho Federal da OAB e é membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de
Brasília. Segue a entrevista que eu, Conceição Lemes, e Patrick Mariano, da
Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), fizeram com o
professor José Geraldo sobre o decreto nº 8.243/2014.
Viomundo — O
que o decreto de Dilma representa para a democracia do país? José Geraldo de
Sousa– Enquanto
diretriz que orienta a administração, ele realiza o que está previsto na
Constituição Federal. Traduz a conquista da sociedade, no processo de transição
da ditadura para a democracia, de institucionalizar um sistema de participação
e de exercício direto da democracia. Por isso, a Constituição de 1988 foi denominada de “cidadã”. Acrescentou ao modelo liberal-burguês representativo a forma atual de exercício direito do poder popular.
É uma realidade que deriva do amadurecimento protagonista
de nosso povo – veja a sua presença reivindicadora nas ruas – e qualifica ainda
mais a democracia. Sem essa participação, a democracia é contida e abre espaço
a jogos de gabinete, formais e, sobretudo, burocráticos. A democracia é viva e
afluente, sempre se expande. Ela é a possibilidade de criação permanente de
direitos. Viomundo — O que muda em
relação ao que temos hoje em dia?
José Geraldo de
Sousa — A partir
do decreto, uma melhor sistematização, no âmbito do executivo, do que já vem
sendo realizado de vários modos. Basta ver que vários desses
instrumentos estão previstos na própria Constituição, alguns, inclusive,
nomeados. É importante salientar que as figuras colecionadas no decreto – conselhos, comissões, ouvidorias, mesas de diálogo, fóruns de interconselhos, audiências públicas, consultas públicas, ambiente virtual de participação social — já eram objeto de institucionalização gestora há muito tempo.
Algumas formas, aliás, experimentadas desde muito antes da
Constituição e por diferentes governos. Por exemplo, as práticas de orçamentos
participativos e as conferências, convocadas estrategicamente como modo de
construir políticas públicas e seus planos diretivos. É o caso das conferências
de saúde, combinando a participação de sociedade, governo e especialistas. A 8ª
Conferência desenhou todo o sistema SUS depois incluído na Constituição de
1988.
O Legislativo igualmente contribuiu para a implementação do
modelo participativo, mantendo o sistema de audiências públicas e as comissões
deliberativas, incluindo as comissões de legislação participativa.
O mesmo acontecendo com o Judiciário, que também instituiu
sistemas de audiências públicas, o amicus
curiae e, finalmente,
a instalação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para controle do sistema com
participação da cidadania. Viomundo
– O que lucra a sociedade?
José Geraldo de Sousa — A sociedade ganha porque se corresponsabiliza pela
gestão, exerce o controle social e encontra mecanismos para fazer valer suas
demandas de modo institucionalizado. Senão o que lhe restará, numa modernidade
com muitos recursos de mobilização, é ir para as ruas e agir com espontaneidade
e força, não necessariamente de forma organizada e com mediações negociadoras.
Assistimos a isso desde as jornadas de junho de 2013 e nas
mobilizações diante da Copa do Mundo. Sem essas mediações, o
processo fica caótico e abre ensejo para excessos, que colocam no mesmo plano
desde a criminalidade ao fascismo social. Viomundo
— A quem caberá implementar o plano? José Geraldo de Sousa — Embora o decreto estabeleça várias interfaces, ele não impõe nenhuma obrigatoriedade e procura estimular os gestores a desenvolvê-las a partir de suas especificidades e do grau de intercomunicação que mantém com a sociedade.
No âmbito do Judiciário, por exemplo, todos os anos são
publicados catálogos de “boas práticas” da democratização do acesso à Justiça e
incentivadas formas de participação acolhidas pela estrutura do sistema, entre
elas os modelos de mediação e de Justiça comunitária. Não há mistério nisso. Viomundo – Por que o PMDB
e alguns partidos conservadores, mesmo da base do governo, estão contra o
decreto?
José Geraldo de Sousa — Porque representam a resistência oligárquica que está
acostumada a subtrair do processo de elaboração legislativa o sentido de
realização democrática dos direitos e, assim, preservar uma prática negociada
de privilégios e de favores. Victor Nunes Leal mostrou esse processo muito bem
em seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto” e Raymundo Faoro em sua obra “Os
Donos do Poder”. Sem a participação popular, nos modos e pelos instrumentos indicados na Constituição, a representação mantém aquele modelo que já Getúlio Vargas denunciava com a sua frase lapidar: “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”.
Manter-se resistente aos avanços democráticos, que
inspiraram outras democracias no mundo depois da Constituinte brasileira, é
preservar os vícios que caracterizam esses grupos: clientelismo, nepotismo,
prebentismo, filhotismo, apadrinhamento. Em suma: a política de favor,
impedindo a Política de Direitos. Viomundo — Como desmontar os argumentos contra o decreto nº 8.243/2014? José Geraldo de Sousa — Em parte abrindo a esfera pública de formação de opinião, como está sendo feito, com inúmeros comentários sobre a correção da proposta.
Requerer do Congresso que use seus instrumentos de
participação – audiências públicas com convites para depoimentos que abram o
debate sobre as intenções declaradas e subentendidas que estão na base das
manifestações pró contra a medida. Em resumo: informar o quanto já se avançou
nesse campo no Brasil e no mundo.
Viomundo — Embora
apenas partidos políticos tenham se manifestado contra o decreto nº 8.243/2014,
setores conservadores do Judiciário e a própria mídia vão posicionar contra. José
Geraldo de Sousa — Sem dúvida. Mas isso também faz parte do processo
democrático e, no fundo, trata-se de uma disputa interpretativa sobre o
conhecimento da Constituição e seu modo de realização.
O importante é participar desse debate porque ele permite
caracterizar o lugar dos protagonistas quando tomam posição. Certos setores são
mais refratários porque acumularam mais privilégios e usam seu discurso
“competente” para disfarçar o lado em que se encontram. É possível um
Judiciário conservador numa sociedade democrática que continue atribuindo à lei
democrática o caráter de promessa vazia?
E os meios de comunicação continuarão sem controle social
quanto às concessões e ao modo como cumprem a sua função constitucional? Como
se dará a implementação das cláusulas de proteção dos destinatários da
comunicação – direito de resposta, cláusula de consciência, ouvidorias,
carta de leitor? Veja que o embate tem também uma agenda oculta. No fundo, é o que se procura proteger por trás de um biombo diversionista e falacioso dos setores conservadores. Viomundo — Na prática, eles querem manter intacta a força dessas mesmas elites?
José Geraldo de Sousa — É evidente. E tanto mais aguerridamente quanto interesses
corporativos e ideológicos são trazidos para a agenda de um debate aberto e com
muitas vozes — propriedade fundiária, corporativismos, faccionismos religiosos
ou de qualquer tipo.
Até quando assumem discursos reformistas o fazem ao estilo
gatopardista (para lembrar Lampedusa e sua obra O
Leopardo): se for o caso, entregar anéis para preservar dedos,
ou, como posto pelo autor italiano na boca do Princípe Tancredi (que
coincidência), “reformar para conservar”. Viomundo
— Por que eles são contra a participação popular? José Geraldo de
Sousa– Porque para eles povo não é realidade, mas, sim, tema.
Só existe no discurso, mas não é reconhecido na política.
São chamados de “classe perigosa” (como mostrou Alberto Passos Guimarães em seu
livro homônimo), para as quais, como no programa de um antigo presidente da
república (Washington Luís, também ex-prefeito de São Paulo), “a questão social
é questão de polícia”. Quando a política se apresenta como ação popular o
primeiro impulso é criminalizar.
Viomundo —
Esse plano poderia diminuir a pressão de lobistas econômicos sobre o Congresso?
José Geraldo de Sousa — Acho que pode qualificar essa pressão, até mesmo
modificar o entendimento sobre a função do lobby. E, assim, impor aos
congressistas formas mais qualificadas também para o trabalho parlamentar, que
considero muito importante e muito mais amplo do que o momento deliberativo em
comissões ou no plenário. Aproximará mais os parlamentares da sociedade
organizada e ensejará disposição mais republicana à política.
Viomundo —
Como nós, enquanto sociedade pode contribuir para que esse plano seja aprovado?
José Geraldo de Sousa — Eu acabo de assinar um manifesto bem fundamentado de
juristas em defesa do projeto. Como professor e como membro de organizações da
sociedade civil (OAB, Comissão Justiça e Paz), vou levar a discussão para os
espaços em que atuo.
Esta entrevista é outra maneira de contribuir para a
formação de opinião. Cada um, em seu âmbito de atuação, comunitária,
corporativa, social ou política deve procurar também formar opinião e tomar
posição. De minha parte procuro assumir minha atitude de cidadania responsável, política e teoricamente. Nesse duplo aspecto, fortaleço a minha prática acadêmica e social. Por isso, no meu âmbito de atuação, que é o Direito, procuro não perder de vista o entendimento da fonte social que o fundamenta.
Durkheim dizia que o direito é a dimensão visível da
solidariedade. Cuida-se de saber, entretanto, qual o direito. E, aqui, relembro
Roberto Lyra Filho para acentuar que as normas em si não constituem o direito,
mas esse surge da sociedade e é por ela realizado como regra material do agir,
traduzindo o que aquele notável professor denominava O Direito Achado na Rua,
vale dizer, a enunciação dos princípios de legítima organização social da
liberdade.
Não é a esse direito que a lei de introdução às normas do
direito brasileiro alude, quando afirma em seu texto que a sua validade decorre
da concretização dos fins sociais a que se destina? E que essa validade é
aferível não só nas normas em que o direito procura se manifestar, mas também
por meio de princípios que os designem?
Por isso que se reivindica, atento à sua questão, às
condições de concretização da solidariedade, operando, pelo direito a
desconcentração da propriedade, em nome da distribuição equitativa e não da
acumulação egoísta, do interesse e da função social que os bens devem realizar,
ou do alcance ético do próprio desenvolvimento.
De resto, essa é a lição que nos trouxe o grande
constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho. Fazendo alusão a O Direito
Achado na Rua, ele lembra a necessidade de o jurista se abrir a outros modos de
consideração da norma do direito. Por meio do olhar atento às exigências do
justo, ele precisa levar em conta as teorias da Justiça, mas também teorias da
Sociedade.
Manifesto de
Juristas, Acadêmicos, intelectuais e movimentos sociais em favor da
Política Nacional de Participação Social; “Todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição” art. 1º. Parágrafo único, da Constituição da
República Federativa do Brasil
Em face da ameaça de derrubada do decreto federal n.
8.243/2014, nós, juristas, professores e pesquisadores, declararam nosso apoio
a esse diploma legal que instituiu a Política Nacional de Participação Social. Entendemos
que o decreto traduz o espírito republicano da Constituição Federal Brasileira
ao reconhecer mecanismos e espaços de participação direta da sociedade na
gestão pública federal.
Entendemos que o decreto contribui para a ampliação da
cidadania de todos os atores sociais, sem restrição ou privilégios de qualquer
ordem, reconhecendo, inclusive, novas formas de participação social em rede.
Entendemos que, além do próprio artigo 1º CF, o decreto tem
amparo em dispositivos constitucionais essenciais ao exercício da democracia,
que prevêem a participação social como diretriz do Sistema Único de Saúde, da
Assistência Social, de Seguridade Social e do Sistema Nacional de Cultura; além
de conselhos como instâncias de participação social nas políticas de saúde,
cultura e na gestão do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (art. 194,
parágrafo único, VII; art. 198, III; art. 204, II; art. 216, § 1º, X;
art. 79, parágrafo único).
Entendemos que o decreto não viola nem usurpa as
atribuições do Poder Legislativo, mas tão somente organiza as instâncias de
participação social já existentes no Governo Federal e estabelece diretrizes
para o seu funcionamento, nos termos e nos limites das atribuições conferidas
ao Poder Executivo pelo Art. 84, VI, “a” da Constituição Federal.
Entendemos que o decreto representa um avanço para a
democracia brasileira por estimular os órgãos e entidades da administração pública
federal direta e indireta a considerarem espaços e mecanismos de
participação social, que possam auxiliar o processo de formulação e
gestão de suas políticas.
Por fim, entendemos que o decreto não possui inspiração
antidemocrática, pois não submete as instâncias de participação, os movimentos
sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado
Brasileiro; ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as
possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo.
A participação popular é uma conquista de toda a sociedade
brasileira, consagrada na Constituição Federal. Quanto mais participação, mais
qualificadas e próximas dos anseios da população serão as políticas públicas.
Não há democracia sem povo. Brasil, junho 2014, Prof. Fabio Konder Comparato; Prof. Celso de Mello;
Prof. Dalmo Dallari; Jose Antonio Moroni, INESC; Joao Pedro Stedile, MST
Fonte: http://www.viomundo.com.br/
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