Uma maré de algazarra, juvenil,
explosiva em sua manifestação de alegria, com violões, cantos e mochilas às
vezes maiores do que os corpos que as suportam. O aeroporto do Rio de Janeiro é
um desfile interminável de jovens que chegam do mundo inteiro, enrolados em
bandeiras e em abraços, cantando a fé só com a voz ou com violões. A hora é, ao
mesmo tempo, grave e imensamente festiva. As jornadas mundiais da juventude que
começam esta semana no Brasil fixarão o rumo oficial da mensagem que o Papa
Francisco apresentará em sua primeira viagem internacional. Um momento que soa
como um modelo de seu nascente papado. Ficaram
para trás as disputas orquestradas por João Paulo Segundo contra a Teologia da
Libertação, os padres pedófilos, a corrupção no Banco do Vaticano, o IOR.
Chegou o “momento da renovação”, como dizem os jovens que chegam ao Rio. Esta
renovação tem um nome que contrasta com os últimos 35 anos de política
vaticana: o “evangelho social”. A palavra “social” é já todo um desafio que
prolonga a ruptura que Bergoglio encarnou na noite em que, após o Conclave
tê-lo escolhido Papa, apareceu em uma janela da Praça de São Pedro e pronunciou
a palavra “povo”. Em Roma, há dez dias, o círculo próximo ao Papa falava de uma
“mensagem revolucionária”. É preciso esperar para ver e ouvir. Desde o
compromisso de forjar “uma igreja pobre para os pobres”, Francisco foi despindo
a figura papal de toda a roupagem monárquica, que a colocava acima dos fieis.
Há uma grande preocupação com a comunicação, inclusive com detalhes que
assombram. A Santa Sé lançou um novo semanário para amplificar a mensagem
papal: Credere. A publicidade diz: “o novo semanário que fará você viver a fé
com alegria”. À esquerda, na capa, um retângulo diz: “a revista da Igreja de
Francisco”. Essa é a Igreja que Francisco apresentará no mais importante país
católico do mundo, Bergoglio visitará os pobres de uma favela, doentes em um
hospital, receberá presos, peregrinará ao santuário de Aparecida e, sobretudo,
se encontrará com jovens de todo o mundo no que pode ser chamado de “Woodstock
católico”. Sua viagem vem precedida por uma série de pronunciamentos que
romperam com o conformismo vaticanista. Nas últimas semanas, Bergoglio
denunciou a “tirania do dinheiro”, o “capitalismo selvagem” e a “globalização
da indiferença”. “Nos encontramos
enfim com alguém que vê o mundo tal como é com os mesmos olhos que o vemos e
sofremos”, diz Angélica, uma espanhola de 19 anos, recém chegada ao Rio, vinda
de Valência com centenas de outros espanhóis. Um dos vaticanistas mais
célebres, Marco Politi, disse que o Papa, “no Brasil, dará continuidade,
aprofundará e esclarecerá seu Evangelho social. Desde que foi eleito denuncia
as novas formas de escravidão, a exploração, a desigualdade, a
irresponsabilidade de algumas forças sociais”. A história também parece correr
na direção de Francisco. O Papa chega a um Brasil convulsionado pela revolta
social, com demandas de justiça social, contra a corrupção, a favor da
renovação de um sistema político gangrenado pelo clientelismo e pela corrupção.
Francisco já havia escrito o discurso central que vai pronunciar no Brasil
durante as Jornadas Mundiais da Juventude, mas, à luz dos protestos, o
modificou. O arcebispo do Rio de Janeiro, Orani João Tempesta, responsável pela
organização da Jornada Mundial da Juventude, viajou a Roma para se encontrar
com Bergoglio. Depois, o seguiu o cardeal arcebispo emérito de São Paulo,
Claudio Hummes, um homem de posições sociais conhecidas por ter aberto as
portas de sua igreja os trabalhadores em greve. O presidente da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cardeal Raymundo Damasceno, também se
reuniu com o Papa em Roma. Este encontro é muito importante na definição do
pronunciamento de Bergoglio, uma vez que foi precedido por uma reunião da CNBB.
Realizada quase no final de junho, a reunião terminou com a redação de um
documento no qual a entidade manifesta “nossa solidariedade e apoio aos
manifestantes”. O texto traz um apoio total aos protestos. Um de seus
parágrafos diz que os gritos contra a corrupção, a impunidade e falta de
transparência (“...) fazem renascer a esperança”. É a esse mundo que chega
Francisco. Um cenário ideal que as autoridades do país temem que sirva de novo
elemento detonador ao que já está latente há semanas. O Papa Francisco não
gosta dos esquemas de segurança e os responsáveis por protegê-lo durante as
Jornadas Mundiais da Juventude não gostam da possibilidade de a chegada do papa
renovar os protestos contra o sistema político. O Brasil aumenta de 11 mil para
14 mil o número de efetivos das forças de segurança encarregados de garantir a
segurança de Francisco. A perspectiva de uma “revolução cidadã” durante a
visita de Bergoglio levou as autoridades brasileiras a propor uma série de
mudanças na agenda papal, mas o Vaticano rejeitou-as. “Não haverá mudanças de
programa”, disse em Roma Federico Lombardi, o porta-voz do Papa. No entanto, as
autoridades do Brasil queriam modificar um monte de coisas. O Brasil argumenta
que se descobriram “indícios” de que grupos opositores preparavam uma
contraofensiva aproveitando a chegada de Bergoglio. O mais perigoso era o
encontro de Francisco com a presidenta Dilma Rousseff, com o governador do Rio,
Sérgio Cabral, e com Eduardo Paes, o prefeito da cidade. Esse ato deve ocorrer
no Palácio da Guanabara, sede do governo do Estado do Rio. Mas como há uma
manifestação programada contra o governador e o prefeito, as autoridades
propuseram realizar o encontro em outro lugar. O Vaticano disse que não. Mais
ainda, as declarações dos responsáveis que se reuniram com Francisco em Roma
mostram que a Santa Sé está com os manifestantes. Após seu regresso de Roma, o
cardeal Claudio Hummes disse: “a mensagem de Cristo está em sintonia com essas
reivindicações do povo”. Será preciso esperar para ver e ouvir. Francisco se
negou a utilizar o papamóvel blindado. Ele se deslocará no mesmo jeep aberto
com o qual circula em Roma. Ao pedido do Papa, tampouco haverá em seu lado
“homens armados com fuzis”. O Papa, dizem em Roma, não tem medo das
manifestações: “elas não são contra o Papa, mas sim contra os políticos”, diz o
Vaticano. Se a promessa se confirmar, haverá no Brasil um encontro entre dois
mundos: o do evangelho liberal que tudo corrompe e destrói o planeta e os seres
humanos, e o que Francisco traz em sua mensagem: o “evangelho social” do
cristianismo. Primeiro ato de um pontificado que, em seus primeiros passos,
expôs a escandalosa e soja trama de corrupção e lutas pelo poder que o
predecessor de Francisco, Bento XVI, não pode desarmar. Isso o levou a
renúncia. Evangelho Social, Teologia da Libertação, segundo vários vaticanistas
ambas têm encontro marcado esta semana no Brasil em uma espécie de
reconciliação misteriosa. O vaticanista Marco Politi alega que “Francisco é um
fruto inesperado da Teologia da Libertação porque é um representante da chamada
Teologia Popular, que não é marxista nem politizada”, mas que denuncia com
força os horrores da miséria, da desigualdade e seus mecanismos econômicos. O
combate que João Paulo II travou contra essa corrente deixou muitas vítimas,
pactos com as ditaduras, corrupção, uma espécie de monstro que seguiu vivo
muito depois da morte do papa polaco. Por esse abismo se foi Bento XVI. Do
mesmo abismo chega Bergoglio. A chamada “igreja de Francisco se constrói sobre
uma montanha de cinzas ainda fumegantes”.
Fonte: www.cartamaior.com.br
Fonte: www.cartamaior.com.br
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