POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Chico e Zé passaram os últimos meses reconstruindo, num trabalho
delicado, as arquibancadas do Maracanã, para que torcedores de inúmeros países
assistam a final da Copa do Mundo em cadeiras individuais confortáveis. Eles
alisaram e acariciaram muita madeira, manejando noções de geometria, com arte e
profissionalismo. Os dois são carpinteiros. Os dois são filhos de José. Os dois
são nordestinos residentes no Rio de Janeiro. Os dois acabam de dar uma lição
de solidariedade a todos nós. Pagaram caro por isso: foram demitidos na última
segunda feira. Procurei os dois para uma conversa, curioso para saber como
viviam. O mais novo, Francisco Souza Batista, 33 anos, filho de José Casemiro e
Maria Xavier, nasceu em Reriutaba, Ceará, que hoje tem pouco mais de 20 mil
habitantes, mas no passado foi território dos índios Reriú. Quando completou 19
anos, Chico migrou para o Rio, onde encontrou outros conterrâneos que,
inspirados no Rock in Rio, organizam um evento anual na Feira de São Cristovão,
na Rocinha e em Jacarepaguá. É o ReriuRio, atualmente em sua sexta edição. Zé,
o mais velho, é pai de Zé e filho de Zé e Zefa. Com tanto Zé, Zé de baixo, Zé
de riba, ele é um dos tantos Zé lá da Paraíba. E foi justamente na Paraíba, na
Zona da Mata, que nasceu José dos Santos César, 47 anos, filho de José Ferreira
César e Josefa dos Santos. Mais precisamente em Mamanguape, território dos
índios Potiguar, hoje um município com quase 40 mil habitantes, que se orgulha
de ter recebido, em 1859, a visita do imperador Dom Pedro II, que lá pernoitou,
depois de descansar, primeiro no bar do Corno e depois no Pousado da Maria
Cheirosa. (Aldeia Maracanã) No
sábado, 12 de janeiro, Zé e Chico haviam acabado de fazer o seu trabalho no
Maracanã, às 13h30, quando escutaram gritos e correria no prédio vizinho, um
palacete construído no século XIX, que serviu de morada ao Duque de Saxe e sua
esposa, a Princesa Leopoldina. Sediou depois uma diretoria do Ministério da
Agricultura até 1953, quando sofreu reformas para abrigar o Museu do Índio,
criado por Darcy Ribeiro e o Marechal Rondon. No período de 1953 a 1978,
abrigou eventos que testemunharam os principais lances da política indigenista
do país. Em 1978, quando o Museu do Índio se mudou para Botafogo, o imóvel
ficou abandonado, sem qualquer tipo de manutenção durante os últimos 35 anos.
Vendo que o Estado não preservava esse patrimônio nacional que se degradava, um
grupo de índios que vivem na cidade decidiu ocupar as ruínas do prédio, em
2006, por reconhecê-lo como um lugar de memória, de memória histórica e afetiva
dos índios e da sociedade nacional. Desde então, os índios pressionam o poder
público para recuperar o imóvel e torná-lo um centro cultural. Na espera, eles
construíram o espaço denominado "Aldeia Maracanã", que serve de
abrigo para 23 famílias indígenas, além de hospedar índios que pernoitam no Rio
de Janeiro. Lá promovem cursos de língua indígena e de culinária tradicional,
realizam contação de histórias, apresentam suas danças e vendem seu artesanato.
Professores visitam com seus alunos o local, no espírito da Lei 11.645 de 2008,
que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula. Foi de lá que, no
sábado, 12 de janeiro, ecoaram os gritos que Zé e Chico ouviram. A Polícia de
Choque da PM havia cercado a área e tentava desalojar os índios, pois a
Prefeitura decidiu demolir o antigo prédio para construir ali um estacionamento
a céu aberto. Quando a PM chegou, os índios retiraram o arame farpado – unha de
gato - do muro e pediram apoio para quem estava do outro lado. Naquele
clima de guerra, os dois carpinteiros nordestinos, que já estavam fora do seu
horário de trabalho, não hesitaram: pularam o muro e passaram para o lado dos
índios. Foram recebidos com muita festa e alegria. Francisco e José não
conhecem detalhes da presença dos índios Reriú e Potiguar na terra de onde
vieram. "Só conhecia os índios através da TV" disse Francisco,
que estudou até a 5 a. série no Grupo Escolar Domingos Araújo, em Reriutaba,
onde viveu até os 19 anos. Mas sua vida não era muito diferente da dos índios
do nordeste: ajudava o pai agricultor nos trabalhos de roça, plantava milho,
feijão, arroz, mandioca, às vezes caçava um tatu. Era uma vida difícil,
sobretudo na época da seca. Por isso, Francisco seguiu o caminho de
muitos reriutabenses e se mudou para o Rio. Antes da construção civil,
trabalhou no Restaurante Spoletto, na Barra como faz-tudo, observando e
aprendendo. Acabou contratado como cozinheiro, com carteira assinada, durante
nove anos. Dessa forma conseguiu educar seus cinco filhos. Um é fiscal de van,
outro é cobrador de van e a moça é recepcionista numa Casa de Grama, em
Itanhangá. Tem ainda uma filha de 13 e um filho de 8 anos. Francisco não
assistiu, domingo passado, dia 13, a ReriuRio na Casa do Ceguinho, em Rio das
Pedras, Jacarepaguá, onde mora, nem na sexta, 11, na Barraca da Chiquita, na
Feira de São Cristovão. Quando o apresentador gritou no palco se ali havia
gente de Reriutaba, levantaram as mãos alguns amigos dele, que foram assistir
as bandas cearenses de forró, especialmente a Memórias de Varjota e a Amor
Cruel, cuja apresentação contou com o apoio do Manoel da Farmácia e do Toim CD.
Mas Francisco não estava lá. Demitido, não participou da festa, que contou com
o repentista Ivan Viana, o cantor Vieirão do Forró e o declamador de poesia
Cabral da Cabeceira. (Pulando o muro) José,
o outro carpinteiro, mora no Parque das Flores, Santa Dalila, em Magé. É
flamenguista – "mas não sou torcedor fanático", diz – nunca assistiu
uma partida de futebol no Maracanã, aonde só havia entrado uma vez na vida, com
o filho então com 5 anos, para assistir um evento promovido pelos evangélicos.
Ao contrário de Francisco, José nunca foi à Feira de São Cristovão, - Tenho
vontade de ir, mas não tenho tempo nem condições para isso – lamenta. Pensa um
dia levar sua neta Júlia, 3 aninhos, para passear lá. Ela é filha de seu filho,
que também se chama José e foi militar da Aeronáutica, servindo no 3o. COMAR,
no Aeroporto Santos Dumont. Foi desligado e agora está procurando trabalho como
motorista. O carpinteiro José, que voltou apenas uma vez a Mamanguape, de onde
saiu ainda pequeno, é mais ligado ao Rio do que à terra dos Potiguares. Casado
com dona Ivanilda de Souza conta que durante o trabalho na reforma do Maracanã,
eles ficavam olhando o movimento dos vizinhos índios, que nunca deram
problemas. Policiais disfarçados contratados pela empresa que atuavam dentro do
canteiro de obras da Concrejato queriam saber o que eles estavam fazendo ali,
quando pularam o muro. - Estamos apoiando os índios. Isso é errado? – perguntou
José. Foi aí que os policiais exigiram deles a entrega do crachá e anunciaram,
então, a demissão dos dois. "Sempre trabalhamos bem, com qualidade.
Ninguém pode reclamar da gente. Não me arrependo do que fiz. Os índios estão
lascados e precisam de uma força" – declarou Francisco. Eles estão agora
com um advogado para reclamar seus direitos Os dois carpinteiros foram
aclamados pelo líder indígena Carlos Tukano, que é do rio Tiquié, no Rio Negro
(AM), num discurso em que acusou os policiais militares de intimidação:
"Não vamos abrir mão. Essa é nossa terra e não vamos recuar". Outro
índio, José Urutao Guajajara denunciou que "o governo quer fazer qualquer
coisa aqui, um shopping, um estacionamento, menos conservar o patrimônio dos
índios. A gente não quer guerra, mas se for preciso, vamos guerrear". O
apoio dos dois carpinteiros, de estudantes da UERJ, de populares, do deputado
Marcelo Freixo (PSOL) e da Defensoria Pública impediu que a tropa de choque
consumasse a expulsão naquele momento. - Este prédio tem um valor histórico
para o Rio de Janeiro. “Se a decisão judicial chegar, vamos ter que ter muito
diálogo para que não saiam famílias feridas”, disse Freixo, que compareceu ao
local por volta das 13 horas. O defensor público federal Daniel Macedo, também
presente, argumentou que não havia um mandado judicial para a PM entrar no
prédio: - Sem esse instrumento judicial, a Polícia Militar está proibida de
invadir a aldeia. Esse documento pode chegar a qualquer momento, mas até isso
acontecer, as coisas tem que permanecer do jeito que estão – afirmou Macedo. Na
sexta-feira, dia 18, o desembargador Raldênio Bonifácio Costa, vice-presidente
do Tribunal Regional Federal da 2 a. Região concedeu dez dias de prazo para a
União se manifestar sobre a remoção da Aldeia Maracanã e a demolição do antigo
prédio do Museu do Índio. Enquanto isso, o governo do Rio não poderá expulsar
os índios. O juiz atendeu um pedido do Ministério Público Federal, que dois
dias antes havia solicitado que fosse reformulada decisão judicial a respeito. Aconteça
o que acontecer, fica o gesto de solidariedade dos dois carpinteiros, demitidos
pela Concrejato, uma das responsáveis pela reforma do Maracanã. Professores da UERJ,
entre os quais Socorro Calháu e Luciana Velloso, da Faculdade de Educação,
organizaram um "Ato de Apoio à Aldeia Maracanã", considerando, entre
outras razões, o papel que vem cumprindo para programar a Lei 11.645. - Ainda
bem que temos uma ação da sociedade para defender seus direitos, com a saudável
idéia de que "a cidade é nossa". “Esse movimento nos chama: é hora de
pular o muro e ficar do lado dos índios, das comunidades e do esforço para
construir cidades onde a sustentabilidade cultural e social na vida não seja
atropelada pela pressa dos grandes eventos” – escreveu a ex-senadora Marina
Silva em sua coluna na Folha de São Paulo. Pulemos, pois, o muro, porque quem
está defendendo o nosso patrimônio e os interesses da população brasileira não
é, nesse momento, nem o governador Sérgio Cabral, nem o prefeito Eduardo Paes,
nem a Concrejato, mas um punhado de índios aguerridos, apoiados pela
solidariedade de aliados, como os dois carpinteiros atavicamente ligados à
causa. O prédio conviveu pacificamente com o Maracanã durante 62 anos, sem
qualquer problema. Sua demolição atende a interesses de grupos econômicos, que
estão se lixando para os lugares de memória. Se até o Bar do Corno e a Pousada
da Maria Cheirosa estão preservados na lembrança de Mamanguape, por que apagar
da memória do Rio de Janeiro o prédio do antigo Museu do Índio?
Fonte: terramagazine.terra.com.br
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