Trata-se
de uma prática funesta, clientelística, deseducadora da política democrática e
republicana e, cada vez mais, estimuladora da corrupção.
A figura da emenda parlamentar do Orçamento da União é
recente como prática congressual. Historicamente, os parlamentares encaminhavam
ou buscavam influenciar obras e serviços nos ministérios e junto ao governo.
Constituía-se num clientelismo restrito, uma influência exercida para “atender
às reivindicações” regionais e locais, mas já possuía o sentido clássico do
deputado ou do senador “despachante”, que consegue as “obras” de que a
população precisa em troca de apoio ao governo. Nas duas últimas
décadas, essa prática cresceu, ultrapassou o privilégio de ser da situação e se
generalizou para todos os deputados e senadores. Virou um “direito” do
parlamentar, com uma cota anual crescente, que hoje atinge cerca de R$ 10
milhões. É mais uma prática funesta, clientelística, deseducadora da política
democrática e republicana e, cada vez mais, estimuladora da corrupção. É claro
que não é a única mazela do Congresso Nacional. O financiamento privado via pessoas
jurídicas, o voto nominal, as coligações proporcionais e a ausência de
proporcionalidade idêntica para todos os Estados na representação da cidadania
são problemas talvez maiores. Mas todos contribuem para o sistema
político-eleitoral anacrônico, antidemocrático e subordinado ao poder econômico
do qual somos vítimas. A emenda parlamentar é uma agressão ao artigo 37 da
Constituição Federal, que diz que a administração pública obedecerá aos
princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade e eficiência no gasto
público. Apesar disso, o uso dessa instituição brasileira vem sendo explicado
como necessidade da “governabilidade” congressual. Os executivos eleitos não
conseguem base parlamentar via sistema eleitoral montado e organizado para
gerar essa situação e então apelam para o mecanismo da “troca de favores” para
conseguir maioria ou neutralizar a oposição. A prática consolidou-se de tal
forma que, recentemente (27/8/2013), os deputados federais aprovaram um Projeto
de Emenda Constitucional (PEC) para tornar as emendas parlamentares
compulsórias ao Poder Executivo. A razão disso é que muitas vezes seus projetos
são frustrados pela ineficiência, atrasos, pouca simpatia ou constrangimento
dos ministérios e órgãos por meio dos quais se viabilizam as propostas. A mesma
Câmara Federal que não vota a reforma eleitoral, o fim da guerra fiscal, o
imposto sobre grandes fortunas, a reforma tributária progressiva, que derrubou
a contribuição sobre as operações financeiras para a saúde, com a maior
facilidade reuniu 376 votos favoráveis para aprovar a PEC das emendas
parlamentares. Na contramão dos movimentos sociais de junho e julho, que não se
veem representados nesse Congresso, todos os partidos indicaram o voto “sim” de
suas bancadas nesse ataque ao artigo 37 da Constituição Federal, nesse
vergonhoso voto em benefício próprio dos parlamentares. A bancada do PT foi a
exceção, ao liberar o voto de seus deputados, mas, com isso, igualou-se aos
demais, pois não determinou o voto contrário, ferindo seu próprio Estatuto e
Código de Ética. Os cinquenta votos contrários, faça-se justiça, foram
majoritariamente petistas. A emenda parlamentar não é apenas absurda como forma
de estabelecer o gasto público. Sem eficiência e planejamento, em torno de R$ 6
bilhões do Orçamento Geral da União são picotados, pulverizados, sem nenhuma
avaliação de prioridades regionais e setoriais nem consideração à opinião da
população, que deveria ser ouvida de forma organizada e deliberativa. Essa
prática também distorce a disputa democrática nas eleições, com os adversários
e dentro dos próprios partidos. Ao longo do mandato, o parlamentar pode
manipular uns R$ 40 milhões e estabelece uma rede de clientelismo com o recurso
público comprometendo prefeitos, vereadores, lideranças comunitárias e sindicais,
com o “favor” da emenda pessoalmente conseguida. Nessas condições, qual é a
chance de uma liderança nova almejar uma eleição? Além dos milhões em
clientelismo, soma-se, crescentemente, o financiamento empresarial das
campanhas. O resultado disso é a estarrecedora estatística que prova que mais
de 70% dos eleitos na Câmara Federal coincidem com as 513 campanhas mais caras
do país. A emenda parlamentar é a antessala da corrupção. Ali começam os
negócios com as empreiteiras, com a prefeitura e com vereadores que serão
beneficiados. A emenda normalmente já vem acompanhada do projeto da obra e/ou
serviço e de quem poderá fazê-la. Em muitos casos, são as empreiteiras que
“sugerem” obras e respectivos projetos. É claro que esse não é o único caminho
para a governabilidade. É possível, mesmo em minoria parlamentar, governar
buscando a legitimação nos mecanismos da democracia participativa, estimulando
a participação popular por meio das formas orgânicas já existentes. No sistema
presidencial brasileiro, é o Executivo que elabora e executa o orçamento. Ele
tem mecanismos legais no artigo 1o da Constituição Federal, nas constituições
estaduais e nas leis orgânicas municipais, bem como na própria Lei de
Responsabilidade Fiscal, que apontam para o exercício direto da cidadania e da
consulta e deliberação o mais ampla e regional possível do gasto público. Nada
impede que o Executivo Federal tenha iniciativas desse tipo mobilizando os
movimentos sociais e suas formas orgânicas já existentes na elaboração do orçamento
público. Governamos Porto Alegre por dezesseis anos e muitas outras cidades
gaúchas, e mesmo o Estado, sem maioria nos parlamentos respectivos. Isso não
nos impediu de fazer bons e reconhecidos governos, com profunda participação
popular via orçamento participativo e empoderamento dos conselhos estaduais e
municipais, nos quais alicerçávamos nossa governabilidade. São experiências
concretas, vividas, e que estamos vivendo, que provam que é possível buscar
outra legitimidade, outra governabilidade que não seja a troca de favores e o
processo corruptor de práticas como as “emendas parlamentares” praticadas no
país. Por fim, se a Câmara Federal quer mesmo discutir o caráter impositivo no
orçamento, que o faça pelos canais corretos do debate democrático e constitucional.
Vamos não só discutir e aprovar a reforma político-eleitoral, mas também o
próprio regime presidencialista ou o regime parlamentarista, já que os
deputados estão tão dispostos a deliberar e executar o orçamento público.
(*) Raul Pont é professor de Teoria Política, deputado estadual no Rio
Grande do Sul, membro do Diretório Nacional do PT e da Coordenação Nacional da
DS. Foi prefeito de Porto Alegre (1997-2000) e é autor de diversas publicações
sobre a democracia participativa. Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br
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