Há apenas dez anos, comentaristas
conservadores como o astrólogo Olavo de Carvalho ainda eram figuras folclóricas
e encaradas com deboche no jornalismo brasileiro.
Nos últimos anos, porém, os meios de
comunicação de massa incorporaram tantos conservadores que eles passaram a dar
o tom geral do jornalismo de opinião.
Hoje, não se afirma com a mesma tranqüilidade do meu tempo de menino que
haver pobres é a vontade de Deus, que eles não têm as mesmas necessidades dos
abastados, que os empregados domésticos não precisam descansar que só morre de
fome quem for vadio e coisas assim. […]
Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não
são mais tema predileto das piadas […]. Do mesmo modo, os políticos e
empresários de hoje não se declaram conservadores como antes, quando a
expressão classes conservadoras era um galardão. – Antonio
Candido, Direito à literatura, 1988.
Há apenas dez anos, comentaristas
conservadores como Olavo de Carvalho ainda eram figuras folclóricas no
jornalismo brasileiro. Nos últimos anos, porém, os meios de comunicação de
massa incorporaram tantos conservadores que eles passaram a dar o tom geral do
jornalismo de opinião.
Dentro e fora da imprensa, todo debate político hoje é
dominado por um discurso de ódio que coloca temas morais como o combate à
homossexualidade e o endurecimento penal em primeiro plano e subordina as
questões econômicas e sociais a essa visão de mundo punitiva.
Na aurora da Nova
República, Antonio Candido podia dizer que o avanço político da classe
trabalhadora tinha civilizado e moderado o discurso conservador. Vinte anos
depois parecem que o oposto aconteceu. Como essa transformação foi possível em
tão curto espaço de tempo?
Estamos vendo no Brasil e em outros
países uma expansão mundial das guerras culturais que tomaram os Estados Unidos
a partir do final dos anos 1980. A antiga polarização entre uma direita liberal
que defendia a meritocracia baseada na livre iniciativa e uma esquerda que
defendia intervenções políticas.
para promover a justiça social passa a ser não substituída,
mas crescentemente subordinada a um novo antagonismo entre, de um lado, um
conservadorismo punitivo e, de outro, um progressismo compreensivo.
Costuma-se atribuir a James Hunter a
precisa identificação do fenômeno e a difusão do termo “guerras culturais” para
se referir ao processo pelo quais temas como o direito dos homossexuais, a
legalização do aborto, o controle de armas e a legalização das drogas passaram
a ganhar proeminência no debate político americano no final dos anos 1980,
opondo “conservadores” a “progressistas”.
Para ele, essa nova polarização dividia o espectro político
de outra maneira, opondo ortodoxos ou conservadores, de um lado, e
progressistas, de outro. Os conservadores se definiriam por um “compromisso com
uma autoridade moral externa definida e transcendente”, e os progressistas, por
uma autoridade moral “caracterizada pelo espírito da era moderna, um espírito
de racionalismo e subjetivismo”.
Num influente livro de 1996, o
linguista George Lakoff concordou com Hunt que o novo antagonismo que se via
nos Estados Unidos opunha visões de mundo baseadas em concepções da autoridade
moral, mas definiu essa oposição de maneira um pouco diferente.
Apoiado na teoria da centralidade das metáforas para a
formação dos conceitos, ele notou que as guerras culturais se assentavam no
confronto de duas metáforas familiares para a sociedade, isto é, os dois
discursos olhavam para a sociedade como uma grande família:
uma família com pai rigoroso e uma família com pai carinhoso
– e, para cada visão da sociedade como família, esse pai metafórico imporia uma
ordem moral. Assim, na perspectiva conservadora, teríamos uma ordem moral punitiva
e disciplinar e, na progressista, uma ordem compreensiva.
Apenas levando em conta essas duas concepções da ordem moral
entenderíamos, por exemplo, por que tanto conservadores como progressistas
acusam uns aos outros de incoerência em relação à proteção à vida pelas
posições que assumem com respeito ao aborto e à pena capital.
Se a proteção à vida é um princípio religioso supremo, por
que conservadores que condenam o aborto frequentemente defendem a pena capital?
Se, para os progressistas, a proteção à vida é um direito humano, por que se
mostram tão insensíveis à morte dos fetos humanos decorrente dos abortos?
Se olhamos para essa divergência não do ponto de vista do
princípio da proteção à vida, mas do ponto de vista da lógica da ordem moral,
entendemos então que não se trata de incoerência de lado a lado, mas
fundamentalmente de como cada discurso trata o erro:
se a mulher que fez sexo fora do casamento deve ser punida,
assumindo a responsabilidade pela gravidez, ou ter as circunstâncias de sua
vida levadas em conta para escolher outro caminho; se o criminoso deve ser
duramente punido com a pena capital ou ter a oportunidade de se reabilitar.Na
literatura não há unanimidade sobre o que teria dado início às guerras culturais.
Elas parecem ser uma reação ao questionamento político das
normas sociais pela contracultura dos anos 1970 ou à fratura das identidades
coletivas proposta pelos novos movimentos sociais e pelo discurso pós-moderno.
Seja como for, parece claro que quem reorganizou o discurso político nesses
termos foram os conservadores e que os progressistas ainda precisam se adaptar
ao novo terreno de disputa discursiva.
A relação entre discurso moral e
político não é nova. No final do século XIX e início do XX, os liberais já
utilizavam um discurso moral que justificava a miséria dos trabalhadores pela
indolência. Antes, porém, o discurso moral era instrumentalizado pelo político,
e agora parece que ocorre o contrário.
Embora não exista identidade nem mesmo
correlação necessária entre o discurso liberal e o conservador, de um lado, e o
discurso socialista e o progressista, de outro, essas articulações discursivas
são preponderantes. Assim, após o início das guerras culturais, vimos uma
mudança de natureza do discurso liberal.
Desde o pós-guerra, o discurso liberal tinha assumido a
forma de um discurso de moderação e bom senso ao qual só podiam aspirar aqueles
que tomavam os fundamentos da sociedade atual como pressuposto e tratavam as
questões sociais e econômicas como prosaicos problemas de administração.
Após as guerras culturais, ele retomou um caráter de ódio e
desprezo de classe que trata os trabalhadores como indolentes que merecem ser punida
com a pobreza pela falta de industriosidade, capacidade de poupança e
empreendedorismo. Pelos mesmos motivos, toda ação social do Estado é vista por
esse discurso como complacência socialista com a incompetência e o comodismo.
O inverso acontece com o discurso
socialista. Se no antigo quadro discursivo o bom senso e o equilíbrio
caracterizavam o discurso liberal, o discurso socialista que colocava em xeque
os fundamentos do sistema concorrencial de mercado.
era radical por sua própria natureza e era desqualificado
pelo establishment como extremista e irrazoável. Já no novo quadro discursivo,
no qual prevalece o discurso moral, o caráter compreensivo e solidário do
progressismo sugere que o discurso socialista adote o equilíbrio e o bom senso
trazidos pela empatia.
Esse antagonismo moral redefine as
regras do debate político. Há oitenta anos, o fabiano Harold Laski defendia a
ideia de que a penetração política e intelectual do socialismo advinha de sua
capacidade de explorar a contradição entre liberdade e igualdade presente no
discurso liberal,.
isto é, liberais e socialistas compartilhavam os valores de
liberdade e igualdade, e o pensamento socialista ascendeu demonstrando que a
igualdade de poder concorrer no mercado era uma formalidade jurídica sem
substância. Assim, o debate clássico que opunha liberais e socialistas tinha um
fundamento comum de valores que foi erodido pela cisão em visões morais de
mundo incomensuráveis.
Resta a pergunta sobre o que devemos
nós, socialistas e progressistas, fazer neste cenário de profundo antagonismo
moral e de classe. Creio que, em vez de lamentarmos a irreversível ascensão do
discurso moral, devemos jogar, em nossos termos, o novo jogo do debate
político. No entanto, isso exigirá empenho em reorientar o discurso e
reorganizar as forças políticas.
Não apenas devemos expressar nossa luta pela justiça social
num discurso moral caracterizado pela empatia e pela solidariedade, como também
precisamos reorganizar as alianças políticas de maneira a dar mais centralidade
às lutas pelos direitos humanos e pelos direitos civis, isto é, contra o abuso
policial e o encarceramento em massa, contra a homofobia, o sexismo e o
racismo.
O ônus do ajuste é nosso. Os
conservadores saíram na frente. *Pablo Ortellado é ativista e professor da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da USP. Coautor dos livros Estamos vencendo! Resistência global no Brasil
(Conrad, 2009) e Vinte centavos: a luta contra o aumento (Veneta, 2013).
Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/
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