No sertão nordestino, dois programas capacitam famílias para
armazenar água durante o período de chuvas e utilizá-las no período de estiagem;
Carta Capital; Paloma Rodrigues
No semiárido
nordestino, o trato da seca vem mudando ao longo dos últimos anos. Se antes a
população combatia o fenômeno, agora se vê diante de uma nova proposta
política: a convivência com a seca. Há oito anos, Aparecida dos Santos recebeu
uma cisterna para armazenar água em sua residência.
Até
então, era preciso andar cerca de três quilômetros para buscar água para ela e
os quatro filhos. Aos 39 anos, Aparecida lembra que a infância inteira foi
assim na cidade de Ipirá, na Bahia, a cerca de 200 quilômetros de Salvador:
"A gente ia buscar água de bode, como a gente chama. É água barrenta, que
a gente tinha que filtrar e ferver. Mas esse era o jeito: pegar água com balde
e voltar carregando na cabeça", diz ela.
A
estratégia é difundida por dois programas que recebem apoio do governo federal
e pretende fazer com que cada família consiga estocar a sua água durante o
período de chuvas e manejá-la pelos meses de estiagem.
Desde 2003, o Programa
Um Milhão de Cisternas (P1MC) vem distribuindo cisternas para as famílias do
semiárido estocarem águas para consumo. A segunda grande meta é fazer com que
os produtores consigam armazenar água para os animações e plantações, medida
prevista no Programa Uma Terra Duas Águas (P1+2).
Antônio
Barbosa, coordenador do programa Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA),
rebate críticas de que o programa é mero assistencialismo. Segundo ele, há um
caráter social, pois envolve o sertanejo no processo. "O P1MC foi o início
de um projeto que pretende ver o semiárido com os outros olhos - não mais os
que tentam combater a seca, mas a entendem como um fenômeno climático da região
e que deve ser contornado", diz ele.
Hoje,
Aparecida diz que pode plantar alface, cebolinha, coentro e outras hortaliças,
realidade bem diferente de quando era mais jovem. "Quando eu era nova, a
mulher só ficava no trato da casa mesmo, os homens que saíam para
trabalhar", diz ela.
A
produção de Seu Josesito de Oliveira Calçada, de 43 anos, também deve aumentar.
Em sua propriedade, acaba de ser construído um barreiro trincheira (na foto),
capaz de armazenar 500 mil litros de água no período de chuvas que se aproxima.
Na propriedade onde mora com os irmãos, eles plantam desde hortaliças como
rúcula, espinafre e alface, até a sua principal fonte de renda, a cebola. São
50 quilos de cebola por semana, além do comércio das hortaliças para a
prefeitura - que compõem a merenda escolar. "Antes, a gente ficava até
desmotivado. Aqui já tivemos muitas propostas de melhorar e nunca chegou para a
gente. Agora chegou e eu creio em Deus que vai dar certo", diz ele.
"Com
o barreiro, de outubro pra novembro enchendo (época de cheias), a gente espera
encher e prolongar o período de produção", afirma. "Isso aqui tudo
era cebola, mas eu acabei tirando, porque eu ficava até dez horas da noite
regando e não dava conta. Mas se juntar água bastante, eu volto a plantar,
porque aí dá para ampliar o sistema de irrigação." O sistema foi
construído pelo próprio Seu Josesito e sua irmã, Denise.
Atualmente,
o déficit de água potável afeta cerca de 300 mil famílias. Barbosa, coordenador
do ASA, explica que no Nordeste ninguém mais morre de seca. "É nesses
lugares onde o planejamento proposto pelos programas ainda não chegou que os
carros pipas são necessários", explica. "E o que acontece também é
que uma família que tem cisterna garante a água para a outra família que não
tem." Barbosa diz que o objetivo é reduzir o número, até o final do ano,
para 280 mil famílias.
Sobre a
água destinada à produção, o Programa deve chegar a 100 mil famílias até o
final de 2014. A longo prazo, o programa espera atingir as 1,5 milhão de
famílias que vivem no semiárido atualmente. Também coordenador da ASA e
integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional
(Consea), Naidison Baptista critica as medidas paliativas e de cunho
emergencial voltadas para a seca, dentre elas a integração do Rio São
Francisco. "É uma obra que não democratiza a água, mas concentra",
diz ele (leia mais sobre a questão AQUI).
Por que então o governo investe nesse sentido?
"Esse é um governo de disputa. Há várias correntes dentro do
governo", diz ele. "Nós conseguimos investimentos do governo federal,
Petrobrás e BNDES para esses dois projetos de convivência com a seca, por outro
lado outros grupos ganharam a transposição do São Francisco. Vai ganhar quem
disputar mais", completa.
Outra crítica feita pelos
coordenadores da ASA é quanto às cisternas de plástico distribuídas pelo
governo federal, parte do programa Água para Todos. "Para o governo,
entregar as cisternas para os municípios já é resolver o programa. Se ele
colocar oito cisternas na sede do município, ele conta que oito famílias
receberam cisternas, mas não tem um controle quanto à entrega."
No último mês de maio, 260
cisternas armazenadas em um depósito foram queimadas em um incêndio criminoso
no município de Taguatinga, no Tocantins. Em julho do último ano, quase mil
cisternas foram atingidas por um incêndio no município de Maracás, no sudoeste
da Bahia. Elas também estavam armazenadas em um terreno da prefeitura e
aguardavam a distribuição para as famílias do semiárido.
Por esse motivo, Barbosa
afirma que atualmente não é possível catalogar exatamente quantas famílias já
estão com o benefício e quantas vezes as cisternas não chegaram ao destino
final. Além disso, ele afirma que a convivência com a seca no sertão é uma
oportunidade para o desenvolvimento de um trabalho social:
"Um programa de construção
de cisternas não é só um programa de construção de cisternas. Imagine que uma
população que historicamente foi julgada incapaz, que ela era castigada, e
agora você constrói outro conceito com as famílias: "eu ajudei a trazer a
minha água, eu construí o meu reservatório". Você cria outra perspectiva
que inclui as pessoas enquanto sujeitos".
Fonte: http://www.asabrasil.org.br/
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